terça-feira, 6 de dezembro de 2022

O Velho Chagado, um edificante conto popular brasileiro

Xilogravura de Lucélia Borges.

Quando Nosso Senhor andava pelo mundo, era sempre em estado de penitente, todo chagado, para ninguém o reconhecer. Uma vez, disfarçado num velhinho, ele chegou a uma casa onde morava um casal. A mulher, que era muito jeitosa, vendo o pobre velho com a barriga quase pregada no espinhaço, apontou-lhe uma cadeira:

— Sente-se aqui, meu velho, que logo eu trarei sua esmola.

Depois disso, trouxe um algodão, embebido em água com sal, e enxugou-lhe as chagas.

Ele agradeceu-lhe e disse que precisava ir, mas a mulher, vendo o seu estado de penúria, não deixou:

— O senhor só vai quando almoçar — e apontou-lhe a única rede que tinha. — Deite-se aqui para descansar, enquanto faço o almoço.

— Não, minha filha! Minhas chagas mancharão sua rede.

— Não tem problema. É por isso que tem água e sabão no mundo!

E foi no quintal, pegou a única galinha que havia, matou e preparou-a para o almoço. Nessa hora, o seu marido chegou da roça, perguntando:

— Quem é aquele velho deitado na nossa rede?

— Um pobrezinho que chegou aqui com muita fome. Pediu água e eu o convidei para o almoço.

— E fez muito bem! — disse o marido, indo em seguida chamar o velho para almoçar.

Quando o pobre velho se levantou, as marcas de seu corpo ficaram impressas na rede: seus braços abertos, suas costas, seus pés. O homem desarmou a rede, enrolou-a e a encostou num canto. Depois do almoço, o mendigo agradeceu e foi-se embora. E o dono da casa botou a enxada nos ombros e voltou para a roça.

Às cinco da tarde, quando retornou, entrando na sala, ele sentiu aquele aroma de jasmim. Um cheiro agradável como nunca havia sentido.

— Mulher, que perfume você usou nesta sala?

— Nenhum!

Ele foi onde estava a rede, desenrolou-a e ela estava mais alva do que antes. Perceberam, os dois, que aquele velhinho era Nosso Senhor. O homem ainda selou o cavalo e saiu à sua procura, mas nem sinal.

Daquele dia em diante, aquela casa ficou abençoada e não faltou mais nada ao bondoso casal.

Mestre Aldenir. Crédito: Mapa Cultural do Ceará

Narrado por: José Aldenir Aguiar (Mestre Aldenir do Reisado), Crato, Ceará.

Conto religioso recolhido por Marco Haurélio e publicado no livro Contos Encantados do Brasil, Aletria, 2022. 

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sábado, 12 de novembro de 2022

Contos Encantados do Brasil

 

Contos Encantados do Brasil, uma viagem ao Brasil profundo
por meio dos contos populares. 

Acaba de sair, com o selo da Aletria, editora mineira sob a coordenação de Rosana Mont'Alverne, o livro Contos Encantados do Brasil, reunião de contos de tradição oral, recolhidos por Marco Haurélio e ilustrados, com xilogravuras, por Lucélia Borges. A obra inova por trazer duas opções de capa assinadas por Caroline Gischewski, responsável pelo projeto gráfico, a partir de xilogravura de Lucélia Borges.

Abaixo, compilamos trechos do prefácio escrito pelo autor:

Se perguntarmos a alguém por que faz determinado gesto, ele poderá não saber o motivo, e talvez responda que o faz “inconscientemente” ou aprendeu com outra pessoa… que aprendeu com outra pessoa, que aprendeu com outra… De forma semelhante, os contos ditos tradicionais se propagam. Ouvimos, repetimos, lembramos, esquecemos, ampliamos, reduzimos. Contamos. E, quando contamos, trazemos para junto de nós, para o nosso círculo familiar, narradores e mais narradores que, ao longo de séculos, milênios talvez, garantiram que as histórias não se perdessem. A trajetória dos contos populares, com destaque para sua incrível capacidade de adaptação, tem suscitado acalorados debates e fomentado o surgimento de algumas escolas, cuja sobrevivência dependeu sempre mais do poder de argumentação de seus membros do que da sua capacidade de, efetivamente, comprovar os seus postulados. Não é nosso propósito aqui enumerar as escolas do Folclore, nomear seus membros ou exumar as suas doutrinas. Importa-nos, por enquanto, tão somente, chamar a atenção para o conto popular, objeto do presente trabalho, uma recolha abrangente, compreendendo um significativo número de versões, que vão desde os contos mais complexos, como o de cunho maravilhoso, aos aparentemente mais simples, e, quando escrevo “mais simples”, refiro-me a questões puramente formais, já que, na contística popular, toda pedra é preciosa. Mesmo o que não reluz é ouro.


O conto popular, também chamado estória (ou história) de Trancoso, da Carochinha, é uma das mais antigas formas de expressão verbal, contemporâneo dos primeiros grupos humanos, irmão do mito, com o qual se confunde, ainda que este se apoie num “ato de crença, de crença em seu objeto, sem o que perde sua base”.1 Irmanado ainda à lenda e à fábula, alimento intelectual de todos os povos, de todas as épocas, o conto preserva, quase sempre de forma cifrada, informações sobre hábitos, usos, costumes, provérbios, crenças, estatutos de épocas as mais diversas, abarcando, praticamente, em sua amplitude temática, todos os assuntos relativos à ciência do Folclore; constitui-se, porém, em parte inseparável do todo, “como a mão com relação ao corpo ou a folha com relação à árvore”. Difere da lenda e do mito por sua universalidade, e com isso não queremos dizer que todos os contos alcançam todos os cantos, e, sim, que, aonde chegam, recebem melhor acolhida graças à sua poderosa capacidade de adaptação.

"Canivetão". Xilogravura de Lucélia Borges. 

A maior parte dos contos maravilhosos difundiu-se por uma vasta área geográfica que vai da Índia à Irlanda, ampliada, depois, pelo processo colonizador. Chegaram ao Brasil, certamente, com as primeiras levas de colonos portugueses e, misturados às narrativas ameríndias, nas quais predominava o fantástico, e às histórias trazidas das Áfricas, ganharam novo colorido no Nordeste primeiramente, mormente nos sertões povoados de assombros milenares. No conto, nada é novo e nada é velho. As transformações atendem a uma dinâmica muito particular que envolve questões externas, como a influência do ambiente e dos costumes e crenças, e internas, estas atinentes às dimensões alegórica e simbólica.

Nas versões sertanejas do conto da Cinderela, a moça não vai ao baile no palácio do príncipe, mas à missa, realiza tarefas típicas do sertão de outrora, como adicionar água aos potes ou alimentar os animais das velhas que a auxiliarão doravante. Os motivos essenciais do conto, no entanto, pouco mudam, qualquer que seja a época ou o lugar. O sapato que possibilita o casamento de Cinderela com o príncipe, por exemplo, é um tema que pode ser rastreado em milhares de versões. Era parte de um rito matrimonial introduzido no Egito, provavelmente durante o domínio persa, nutrindo a lenda de Ródope, a cortesã grega que vem a desposar o faraó. É o que nos conta Heródoto: uma águia arrebata o sapato da nossa heroína e o deixa cair sobre o faraó, fazendo com que o soberano do Egito envide todos os seus esforços para encontrar a dona do tal calçado que tanto o fascinara (História, tomo II, XCVIII). O teste de casamento, por meio do experimento do calçado, era, segundo informação de Luís da Câmara Cascudo, “ainda popular na Alemanha do século XVI”, aproximadamente trezentos anos antes de os Irmãos Grimm registrarem a versão mais famosa da história.

"A princesa da Cara de Pau", versão brasileira de "Pele de Asno".
Xilogravura de Lucélia Borges

Todos os contos reunidos neste livro foram colhidos diretamente da fonte da memória, isto é, foram ouvidos, anotados e fixados, mantendo-se sua estrutura básica e conservando, quase sempre, as marcas da oralidade. Os narradores, guardiães da tradição, são identificados ao final de cada história. Um deles, o senhor José Marques de Sousa, apelidado carinhosamente de Zé Cabeça, falecido em 2019, por ocasião da coleta das histórias, em 2015, afirmou ter 107 anos de idade. Além de Bela Inês e a Moura Torta Panela, colher e chicote, narrou outros contos, publicados no livro Vozes da tradição. Três histórias (Branca Flor, Bestore e a princesa Maria Borralheira) foram publicadas originalmente no livro O Príncipe Teiú e outros contos brasileiros, de circulação muito restrita.

No tangente à divisão, optamos pelo Sistema ATU (Aarne-Thompson-Uther), adotado em outras publicações nossas, com uma única alteração: começamos pelos contos maravilhosos, ou de encantamento, mais numerosos, e não pelos contos de animais, como seria de se esperar, por se tratar de uma tabela alfanumérica. Contamos, como sempre, com o apoio dos professores Paulo Correia e José Joaquim Dias Marques, do Centro de Estudos Ataíde Oliveira (CEAO), da Universidade do Algarve, Faro, Portugal.

"Maria da Cobrinha". Xilogravura de Lucélia Borges.

Recolhidos, em sua maioria, no sertão baiano, universais nos motivos e temática, nacionais nas cores, sotaques, variantes linguísticas e no colorido da flora e fauna, os nossos contos comprovam o que foi dito pelo grande escritor mineiro João Guimarães Rosa, que também bebeu na fonte da tradição: “O sertão é o mundo.” Mundo que vira mar, como previu o beato Antônio Conselheiro, mar de histórias, água de vertente que, teimosa, ainda cisma em correr.

Italo Calvino, no posfácio ao Pentameron, em 1974, afirma que “el mundo de las fábulas és um mundo matinal”, e, no caso de Basile, manifesta-se sempre com uma metáfora distinta. Na nossa coletânea, alvoradas e crepúsculos se alternam em muitas narrativas, mas a mensagem, implícita, é a de que as histórias sempre vêm à luz. Basta que tomemos assento e abramos o coração e os ouvidos, para que a jornada comece. Ou recomece, quando, a cada escuta, espaço e tempo se transfiguram e podemos contemplar, embevecidos, as cores de um entardecer que jamais deixou de ser manhã.

MAIS INFORMAÇÕES:

Título original: Contos Encantados do Brasil

2022, 1ª edição

337 páginas, 13,5 x 20,5 cm

ISBN: 9786586881851

Autor: Marco Haurélio

Ilustrações: Lucélia Borges


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Fonte: Cordel Atemporal. 

sábado, 11 de junho de 2022

Sobre o conto popular

 

Os três cavalos encantados. Xilogravura de Lucélia Borges

O conto popular, também chamado estória (ou história) de Trancoso, da Carochinha, é uma das mais antigas formas de expressão verbal, contemporâneo dos primeiros grupos humanos, irmão do mito, com o qual se confunde, ainda que este se apoie, segundo Renato Almeida, num “ato de crença, de crença em seu objeto, sem o que perde sua base”. Irmanado ainda à lenda e à fábula, alimento intelectual de todos os povos, de todas as épocas, o conto preserva, quase sempre de forma cifrada, informações sobre hábitos, usos, costumes, provérbios, crenças, estatutos de épocas as mais diversas, abarcando, praticamente, em sua amplitude temática, todos os assuntos relativos à ciência do Folclore; constitui-se, porém, em parte inseparável do todo, “como a mão com relação ao corpo ou a folha com relação à árvore” (PROPP). Difere da lenda e do mito por sua universalidade, e com isso não queremos dizer que todos os contos alcançam todos os cantos, e, sim, que, aonde chegam, recebem melhor acolhida graças à sua poderosa capacidade de adaptação.

Os contos maravilhosos, de magia ou de encantamento conservam elementos temáticos mitológicos, razão pela qual nos parecem tão familiares, assim como em outros tempos, devem ter parecido familiares aos trabalhadores que ergueram as pirâmides de Gizé ou aos guerreiros que, por dez anos, combateram diante das muralhas de Troia. No antigo Egito, por exemplo, em vários fragmentos encontramos motivos ainda correntes em contos da Europa e da Ásia, a exemplo de “O náufrago, cuja datação imprecisa compreende de 2000 a.C. a 1700 a.C. É uma história incompleta, com lacunas, tendo como protagonista um único sobrevivente de um naufrágio no Mar Vermelho, lançado a uma ilha governada por um rei dos espíritos em forma de serpente. Apesar da gentileza com que é tratado, o homem vive com medo, até que, quatro meses depois, é resgatado por um navio. Antes, o rei da ilha lhe conta uma história sobre uma donzela terrestre que vivera no local e perecera com a família do rei.

Como a história da donzela aparece sem desenvolvimento algum, Stith Thompson, estudando os motivos, pergunta: “Trata-se do conto de um ogro e do resgate de uma menina, como no conto popular de hoje?” Outro conto bastante difundido, de época mais recente (entre 1600 a.C. e 1000 a.C.), narra a história de um general egípcio que, fingindo trair o seu exército, promete enviar centenas de presentes à cidade guarnecida por seus inimigos. Os supostos presentes eram sacos ou jarros enormes com os soldados do general que, levados para dentro da cidade, causaram a sua ruína. A burla, que antecipa em alguns séculos o desfecho da Guerra de Troia (the Trojan Horse, motivo K754.1 na tabela de Thompson), reaparece no conto Ali-Babá e os quarenta ladrões das Mil e uma noites.

Trecho da introdução ao livro Contos encantados do Brasil (Aletria), lançado recentemente pela Editora Aletria. Para adquirir a obra, clique AQUI

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sexta-feira, 20 de maio de 2022

O Pentameron no Brasil

Sol, Lua e Talia, versão napolitana de "A Bela Adormecida", ilustrada por Warwick Goble


Marco Haurélio[1]

São muitas as edições das obras dos Irmãos Grimm em português (completas, compactas, adaptadas, mutiladas) para todos os públicos e paladares. Não se diga o mesmo de coletâneas mais antigas e raras, dos povos mediterrânicos, em especial as da Itália, terra de abundante colheita: Le piacevoli notti, de Giovanni Francesco Straparola, sobre quem pouco se sabe, ou do Pentameron, de Giambattista Basile, para ficarmos apenas nos contos populares italianos e suas versões literárias dos séculos XVI e XVII. Embora não fossem coletores, no sentido moderno do termo, não há dúvidas de que ambos, Straparolla e Basile, ouviram muitas das estórias da oralidade, adaptando-as conforme as convenções vigentes em cada época. Straparola, cujo nome, que parece ser um apelido, significa “o que fala demais”, é uma personagem um tanto misteriosa. No Brasil, apenas a Landy Editora lançou uma versão incompleta das Piacevoli notti, traduzidas como Noites agradáveis, por Renata Cordeiro, em 2006. De O Conto dos Contos, conhecido também como Pentameron, lamentavelmente, não havia tradução para o português. Quem quisesse acessar a obra-prima de Giambattista – ou Giovan Battista – Basile teria de recorrer a edições estrangeiras.

Para nosso gáudio, agora, temos em mãos, vertida para o português, uma das obras mais importantes do barroco italiano. A iniciativa, cujo valor histórico e cultural não pode ser mensurado, coube a Francisco Degani, tradutor de Pirandello e Manzoni, que foi-se abeberar do dialeto de Nápoles do tempo de Basile, cotejando-o com o italiano moderno, seguindo as lições do mestre Benedetto Croce, que assina o prefácio da clássica edição italiana. As marcas da oralidade, o vozerio das ruas e a villanella dos campos, o cheiro dos mercados e das vielas, o calão dos portos, os longos diálogos que, por vezes, parecem monólogos, pontuados por anexins, metáforas e frases de efeito, tudo é parte de um cortejo mágico em que ressoa forte a poesia do povo, a poesia da vida.

Os Irmãos Grimm, em uma apreciação crítica publicada como apêndice aos Marchen[2], consideravam, injustamente, o Pentameron uma imitação do Decameron, de Boccaccio, embora reconhecem que a sua base era mesmo a tradição e que “durante muito tempo esta coleção de contos foi mesmo a melhor e a mais rica de todas as que foram compostas por uma nação”.[3] Mais adiante, estabelecendo um contraponto entre os contos italianos, vivazes e brincalhões, e os alemães, mais sóbrios e equilibrados, sentenciam: “Há assim um contraste marcado com o estilo tranquilo e simples dos contos alemães. É riquíssimo em expressões idiomáticas pitorescas, proverbiais e espirituosas que o autor tem sempre à disposição e que normalmente acertam em cheio”. [4] Não escapam aos Grimm, também, o excesso de metáforas, certamente sob influxo de Rabelais, além do elo de muitas estórias italianas com os contos de sua recolha, apontando trinta e três exemplares, como Petrosinela (Rapunzel), Nennillo e Nennela (Hansel e Gretel), Os três reis animais (A bola de Cristal), Sol, Lua e Talia (A bela adormecida) etc., além do vínculo do conto O dragão com o mito de Siegfried, herói da Canção dos nibelungos.

No Brasil, apenas em publicações avulsas, alguns contos de Basile podiam ser conhecidos. Abundam, no entanto, nas coletâneas de contos tradicionais, desde Silvio Romero (Contos populares do Brasil), passando por Lindolfo Gomes (Contos populares brasileiros), Luís da Câmara Cascudo (Contos tradicionais do Brasil), Doralice Alcoforado (Belas e feras baianas) etc. versões e variantes das estórias do Pentameron. A popularidade de Maria Borralheira, A Moura Torta, João e Maria, além dos contos do ciclo do noivo animal, aproxima-nos de tal forma de Basile que, ao folhearmos a sua obra, temos aquela sensação de que estamos nos debruçando sobre algo familiar. De minha parte, nos contos de coligi, sempre recorri ao Pentameron para efeito de cotejo e comparação. Nos livros Contos folclóricos brasileiros, Contos e fábulas do Brasil, O príncipe Teiú e outros contos brasileiros, Contos e lendas da Terra do Sol e Vozes da Tradição, algumas narrativas exalam o mesmo frescor das estórias napolitanas, unidas que estão pela origem comum e pela exuberância de tipos e motivos. Um conto recolhido em Igaporã, Bahia, chamado Angélica mais afortunada, com a história de um príncipe encantado em um teiú, é parente em primeiro grau de O cadeado (entretenimento nono da segunda jornada) do Pentameron. Ambos têm como ancestral o conto mítico de Apuleio, Eros e Psiquê, d’O asno de ouro, pertencendo ao ciclo do príncipe encantado em animal em cuja demanda sua esposa terá de sair depois de, imprudentemente, tê-lo perdido por conta da violação de um tabu relacionado à curiosidade. A heroína, que está grávida, dá à luz na casa da sogra, onde, depois, o marido encantado cantará uma canção de ninar para o filho (ATU 425E[5]). No conto napolitano, na tradução de Degani, eis a cantiga:

Oh belo filho meu,

se minha mãe soubesse,

em bacia de ouro o lavaria,

com faixas de ouro enfaixaria,

e se o galo nunca cantasse,

nunca de você me separaria”.

 

No conto baiano, o acalanto aparece com mais detalhes e a mesmíssima função:

— Meu filho,

se papai mais mãe soubera

filho de quem tu era,

em bacia de prata te lavava

e em toalha com fios de ouro te enxugava.

Hoje o galo canta,

o jegue urra, o sino toca:

contigo amanheço o dia.[6]

 

Pentameron (Nova Alexandria), em tradução de Francisco Degani.

Por isso, os contos do Pentameron, que sempre circularam entre nós, agora chegam vestidos de graça e de bonomia, com o toque peculiar de seu autor/coletor, que jamais escamoteia o que têm de universal, nos quais Ítalo Calvino, escrevendo em 1974, enxergou as cores da alvorada e do crepúsculo. Em seu conjunto, por sinal, os contos de Basile, que oscilam entre o sublime e o grotesco, integram o patrimônio cultural comum, que, se quisermos, podemos chamar de inconsciente coletivo, e que faz da humanidade, em que pesem as diferenças, e, certamente, por causa delas, uma mesma e barulhenta família.

Ensaio publicado na edição brasileira de O Conto dos Contos



[1] Escritor, poeta e folclorista, autor de vários livros dirigidos a crianças e jovens, além de outros resultantes de recolhas de contos tradicionais.

[2] Os Kinder und Haussmärchen (Contos da criança e do lar).

[3] Contos completos – Irmãos Grimm. Tradução: Teresa Aica Bairos, Lisboa: Círculo de Leitores, 2017, p. 904.

[4] Idem, ibidem, p. 905.

[5] Publicado em 1910, pelo finlandês Antti Aarne, o livro Verzeichnis der Märchentypen (Tipos internacionais do conto popular), reuniu, num sistema alfanumérico os contos predominantes na zona indo-europeia.  Em 1962, a obra foi ampliada por Stith Thompson, folclorista estadunidense, e os contos catalogados passaram a ser conhecidos pela sigla AT ou AaTh (em homenagem aos dois estudiosos). Em 2004, depois da atualização e ampliação levadas a cabo pelo alemão Hans-Jorg Uther o sistema passou a ser denominado ATU. Em 2013, Carolina Stromboli traduziu o Pentameron para o italiano, classificando os contos conforme a tabela ATU. Temos 41 contos maravilhosos (incluindo dois não classificados), sete realísticos e dois humorísticos.

[6] Veja-se HAURÉLIO, Marco. Contos e fábulas do Brasil. São Paulo: Nova Alexandria, 2011, p. 65.

domingo, 20 de março de 2022

A maravilhosa Luzia Teresa


Luzia Teresa dos Santos nasceu e morreu pobre e, não fosse o feliz acaso de ser “descoberta” pelos pesquisadores do Núcleo de Pesquisa e Documentação da Cultura Popular, da Universidade Federal da Paraíba, sob coordenação de Altimar de Alencar Pimentel (1936-2008), jamais saberíamos de sua existência. Há discrepâncias sobre a data de seu nascimento. Na carteira de identidade, consta 18 de março de 1911, mas ela, em depoimento a Myrian Gurgel, afirma ter nascido em 1909.


Tendo de trabalhar desde os oito anos, assumindo, depois da morte da mãe, a responsabilidade de ajudar seu pai a criar 15 filhos, não teve propriamente uma infância. Ainda assim, durante os trabalhos coletivos, como por ocasião das debulhas de feijão e das farinhadas, na zona rural de Guarabira, no brejo paraibano, ouvia, enlevada, as histórias de trancoso, os contos velhos de origem vária. A morte do pai durante a revolução de 30 foi um duro baque para Luzia, pois, na mesma ocasião, sua irmã Antônia havia fugido de casa com um rapaz de Campina Grande. Casou-se, aos 25 anos, com Luiz, seu “primeiro e único namorado”, viúvo e pai de quatro filhos, e mudou-se para a capital paraibana. Foi com ele que aprendeu a maior parte das histórias que viriam a compor o seu vasto repertório.

O único filho de Luzia, ainda jovem, viajou para São Paulo, a terra do vai-não-torna, e dele ela não teve mais notícia. Trabalhou muitos anos como empregada doméstica e, com o apurado, ajudou o marido a construir uma casa modesta. O terreno não pertencia a eles e o proprietário exigiu a desocupação, indenizando o casal. Com o dinheiro, construíram uma casa modesta em Bayeux. A mesma casa na qual ela acolhera um rapaz que, por ocasião da doença, atiraria fora todos os seus pertences.


Altimar Pimentel, descrevendo-a, dá-nos uma ideia da grande contadora de histórias que foi Luzia Teresa:

Impressiona em Luzia Teresa a expressividade do rosto, dos braços magros e longos, das mãos que se erguiam ou que ela utilizava em gesticulações tão precisas. A expressão corporal compunha com as variações vocais, as inflexões apropriadas os momentos mágicos e cativantes em que narrava. Os gestos desenhavam personagens e situações, evocavam imagens, delineavam seres e coisas. A velhinha calada, acanhada, tímida, transmudava-se narrando estórias de príncipes, princesas, fadas; vivia cada personagem e colhia exemplos locais para melhor visualização da narrativa.

(Estórias de Luzia Teresa, vol. 1, p. 399. Brasília, Thesaurus, 1995).

Instada pela professora Myrian Gurgel, que integrava o NUPPO, a dizer, em entrevista, qual era o seu conto popular favorito, Luzia afirmou ser O príncipe encantado num pombinho. E reiterou que o príncipe se desencanta, mas não sofre. Quem sofre é a princesa, verdadeira protagonista da história que ela, a pedido de Altimar Pimentel, teve de repetir duas vezes. Não deparei esse conto entre os arrolados por Altimar nos três volumes lançados pela Thesaurus nem entre os contos inéditos, do quarto e quinto volumes, não lançados, mas sumarizados no segundo volume da coleção.


A última história de Luzia Teresa, registrada por Myrian e Altimar, foi A menina do cabelo de ouro, narrada no hospital Padre Zé, no dia 26 de janeiro de 1983. Durante o período de internação, que se estendeu até 31 de maio de 1983, ela entreteve os enfermos com o seu dom maravilhoso. Por incrível que pareça, minha avó paterna, que também tinha prenome de Luzia, mas era baiana, e grande contadora de histórias, morreu no mesmo ano, quase no mesmo mês e com a mesma idade de sua "irmã" paraibana. 

A mais conhecida coletânea de contos populares, Os contos infantis e domésticos dos Irmãos Grimm, trazia, na sétima e última edição em vida dos autores, de 1957, 200 histórias, entre contos e lendas. De Luzia Teresa, sozinha, foram registrados 242 contos populares, a maior parte pertencente ao rol dos contos maravilhosos, sendo a informante, sem dúvida, a maior das maravilhas. 

quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Nas Veredas do Cordel

 


Começa hoje um novo ciclo de lives com curadoria do poeta Marco Haurélio. Serão 10 encontros na página Cordel e Repente do Facebook, sempre às 18:30h,  e retransmitidos pelas bibliotecas públicas da cidade de São Paulo. O projeto Nas Veredas do Cordel foi pensado para abarcar a poesia popular em sua diversidade. Todos os encontros contarão com intérprete de libras. 

O convidado do primeiro dia, em evento batizado como Ecos da Mãe África, é o Mestre Bule-Bule, reconhecido como um dos grandes nomes da cultura popular brasileira. Cordelista, repentista, embolador, coquista, sambador, Bule-Bule relançou recentemente a obra-prima Orixás em cordel, pela Tupynanquim Editora, de Fortaleza.

A Biblioteca Vicente Paulo Guimarães hospedará o encontro hoje. 

Para acessar a página Cordel e Repente, clique AQUI