24.4.24

O TEMPO QUE ESTAMOS A VIVER

Por A. M. Galopim de Carvalho

Estamos a viver um tempo altamente preocupante, não só a nível internacional, como cá dentro deste “torrão” de iliteracia de quase tudo, mercê de um sistema educativo que deu e dá diplomas, mas não deu nem dá esse tudo que tanta falta nos faz. 

“O poder do feiticeiro reside na ignorância dos seus irmãos tribais”. Quer isto dizer que, quanto mais inculto for o povo, mais facilmente é dominado e, até, desprezado pelo poder. Sempre foi assim. Está escrito e reescrito na História.

E sempre assim será num país caído nas lutas entre aparelhos partidários, onde emergem políticos incompetentes e oportunistas, de que a nossa sociedade está cheia, onde, de há muito, impera a corrupção, o vírus do futebol profissional e a promiscuidade entre a política, o poder económico e a justiça.

 

Ao aproximar-se a data de comemorarmos os 50 anos de liberdade, é com um sentimento de profunda decepção que me dou conta deste grande número de anos desaproveitados. É por demais evidente que não soubemos aproveitar a liberdade que nos foi oferecida, para erradicarmos muitos dos nossos atavismos civilizacionais e culturais. 

Comemoramos 50 anos de liberdade, apenas de expressão, reunião, criação de partidos, associações e coisas assim, mas são muitos os nossos concidadãos, sem esquecer os milhares de emigrantes, privados da liberdade de dar aos filhos uma refeição e uma habitação condignas, de acesso à justiça, em pé de igualdade com aqueles que a gente sabe. 

É evidente que a revolução, de que estamos a festejar o quinquagésimo aniversário, nos abriu portas e janelas à democracia, à segurança social, aos cuidados de saúde, à ciência, ao ensino e à cultura, portas e janelas que se têm vindo a fechar sob o olhar de uma classe política mais interessada nas lutas partidárias, nos compadrios e nas vantagens do poder. Uma classe política que não facultou aos cidadãos cultura civilizacional, científica e humanística. porque entendeu que havia outras prioridades.

Este abandono permitiu que uma significativa parcela dos portuguese a quem a escola não deu capacidade para “distinguir o trigo do joio”, marcada pela iliteracia de quase tudo, alienada pelo futebol e pelos programas televisivos de entretenimento que nos impõem e nos entram pela casa dentro a toda a hora, desse ouvidos a uma extrema direita (até, há pouco escondida e diluída nos partidos de direita e de centro-direita), agora, com importante voz no Parlamento, que, usando da plena liberdade que a democracia nos oferece, tenta declaradamente destruí-la, fazendo uso de um populismo inteligentemente pensado, que diz aquilo que essa grande parcela da população, desiludida e empobrecida física e intelectualmente, quer ouvir.

Entramos na nova legislatura e no novo governo com várias crises por resolver, entre as quais destaco, por conhecer melhor, a da Educação, que, desde há muito, por falta de visão política atravessa uma crise, sem solução à vista. Estamos a viver um tempo de inverdades ao mais alto nível e incertezas, à beira (estou em crer) de nova crise política. Um tempo de miséria e, até, de fome para um número cada vez maior de famílias, de miserável abandono dos idosos, de corrupção descarada e impune e de aumento do número e da riqueza dos ricos. A chamada classe média está a afundar-se, o desemprego está a ressurgir e é mais um incentivo crescente à igualmente dramática emigração de uma juventude qualificada.

 

É este o panorama nacional nas vésperas de celebrarmos os 50 anos daquela madrugada. É verdade que há muito para festejar, mas também é verdade que tenhamos consciência de que é preciso que saiamos à rua, unidos e em força, num Portugal de Norte a Sul, como naquela manhã que agora se comemora.

 

 

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20.4.24

Grande Angular - Vítimas da injustiça. E da Justiça!

Por António Barreto

Depois de fundada a democracia, há quase cinquenta anos, muito melhorou e quase tudo mudou. Mas a Justiça talvez não. Ou antes, a Justiça não soube, não quis ou não foi capaz de se adaptar aos novos tempos, aos novos direitos e aos novos deveres. Ou os governantes e o legislador não souberam tratar da Justiça. Seria bom que, neste tempo de balanços, não se esqueça a Justiça. Ainda por cima, com tantas anomalias diante de nós!

 

Há pouco tempo, a dissolução do Parlamento, a convocação de eleições e a demissão do Primeiro ministro foram actos políticos da responsabilidade do Presidente da República, que deles tem de prestar contas. Politicamente. Foram gestos contestados por muita gente e apoiados por outros. Mas tudo começou com um gesto, que muitos consideram errado e excêntrico, da Procuradora Geral da República. É judicialmente que ela tem de esclarecer e de prestar contas, algo que não tem feito. Mas deveria fazer. Não basta anunciar a sua não renovação de mandato.

 

Todos conhecemos também as decisões contraditórias, adversárias e conflituosas de vários magistrados sobre os casos mais gritantes da actualidade, nomeadamente BES e Marquês. De todas as suas decisões, os magistrados deveriam esclarecer, argumentar e prestar contas. Mas não o fazem. Julgam ser seu direito não o fazer. Consideram que as sentenças e os acórdãos bastam. O que não é verdade.

 

Há casos escandalosos de demora, de morosidade deliberada, de lutas burocráticas e de gestos despóticos prejudicando ora arguidos, ora vítimas, ora autores.  Todos os processos famosos, que vivem connosco há anos, fazem parte do quotidiano. Já ninguém espera que se resolvam. Todos pensam que vão prescrever. De comum a estes casos mais falados, o facto de envolverem pessoas poderosas. É provável que tenhamos, na Europa, um recorde de governantes, directores, administradores, banqueiros, deputados, autarcas, magistrados e polícias às voltas com os tribunais e a trato da justiça. Por que razão é tão difícil avançar, resolver e progredir?

 

Talvez um dia os historiadores saibam responder a esta pergunta tão simples: o que correu mal com a Justiça portuguesa? Na verdade, nada, actualmente, parece satisfatório. Sabemos que a justiça se adaptou mal às grandes mudanças das últimas décadas. À democracia, à economia de mercado, à integração europeia e ao novo regime constitucional de direitos dos cidadãos: a todas estas “novidades”, magistrados e instituições tiveram dificuldade em se adaptar. Porquê? Como foi possível?

 

Os profissionais da justiça, ajudados pelos políticos, souberam reforçar os seus poderes, aumentar a sua independência e consolidar os seus privilégios. Organizaram a sua autogestão. E não fizeram esforços para melhorar a sua eficácia, para serem mais justos, para prestar contas, para assumir novas responsabilidades e para melhor cumprir os seus deveres. Voltando à interrogação inicial: porquê? Como foi possível? Resistiram à mudança social e política? Tinham assim tanto poder? São conservadores? Foram os políticos que lhes concederam estatutos e privilégios? Os políticos têm medo dos magistrados?

 

São muitos os casos actuais, do BES ao Marquês, do BNP à PT, que ilustram as dificuldades da Justiça portuguesa. Mas de que se trata verdadeiramente? Da legislação? Dos magistrados? Das regras processuais? Na verdade, um dos pontos mais sensíveis é de recente identificação. A justiça portuguesa faz cada vez mais o caminho da luta de classes e de corpos profissionais, dos diferendos ideológicos e dos conflitos de interesses. Dos seus próprios e dos que partilham na sociedade. Só esta nova luta de classes, muito negativa para a sociedade, explica disfunções e atrasos, conflitos e ineficiências, todos os dias referidos na imprensa. Com uma nota negativa: os magistrados sentem-se no direito de não explicar razões nem argumentar decisões.

 

As generalizações são inimigas da razão e da verdade. Todos os juízes não são iguais. Como o não são todos os procuradores, todos os políticos, todos os tribunais e todos os polícias. São só alguns. O suficiente para deixar o sector em crise, a opinião pública desconfiada e os cidadãos incrédulos.

 

Pode parecer cândido. Mas a verdade é que quase todos sonhamos com a hipótese de independência de uma instituição. Excepto alguns “realistas” ou cínicos, muitos pensam que seria ideal haver instituições que não fossem necessariamente a tradução de interesses, de classes ou de negócios. Sabemos há muito que tudo tem envolvimento social. Não há sector de interesse ou actividade que não tenha conotações sociais. Direito, economia, literatura, filosofia, religião, arte… Regras e pensamentos seguem interesses ou tradições, pontos de vista e visões do mundo.

 

Mas o direito é um caso especial. Na verdade, é o grande instrumento de regulação das sociedades e dos comportamentos. E garante da liberdade. Sabemos como o direito já defendeu os traficantes de escravos ou os proprietários de lenha. Ninguém ignora que a legislação sobre a greve, o direito de voto ou o poder paternal traduz interesses, regras e privilégios. Nada disto é ignorado. Mas também é sabido que o progresso da humanidade se faz pela distância crescente relativamente aos interesses e às visões do mundo parcelares.

 

Ora, a Justiça atravessada pelas lutas políticas e de classes, ou incubadora das suas próprias lutas internas, é a pior notícia que a democracia pode dar ou receber. Nas sociedades democráticas, o progresso faz-se através de formas cada vez mais apuradas e universais. O direito e a justiça não se limitam a defender a ordem estabelecida e as escalas de poderes de facto, antes procuram afastar-se sempre dos interesses parcelares. O direito universal e o respectivo sistema de justiça procuram servir os interesses superiores de um país e de uma sociedade, o bem comum, assim como os direitos de todos os cidadãos, não apenas de uns grupos contra os outros.

 

Há uma procura muito complexa: a de encontrar um justo equilíbrio entre autonomia e independência, por um lado, e democraticidade e representatividade, por outro. Os magistrados sabem que a sua última responsabilidade é perante o soberano, o cidadão. Todos eles defendem, e muito bem, a sua independência, mas todos devem também admitir a responsabilidade. E prestar contas.

 

Não cuidemos apenas das desigualdades sociais e económicas. Nem só das vítimas das injustiças. Pensemos também nas vítimas da Justiça!

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Público, 20.4.2024

 

 

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18.4.24

No "Correio de Lagos" de Março de 2024

 

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No "Correio de Lagos" de Março de 2024

 

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13.4.24

À GUISA DE INTRODUÇÃO


Por A. M. Galopim de Carvalho

Se tivesse que escolher uma actividade extraprofissional, a condizer com a minha maneira de ser e estar na sociedade, relativamente ao conhecimento, seja o científico, em que fui profissional a tempo inteiro, seja qualquer outro, do erudito ao mais iletrado, escolhia, sem a menor hesitação, “divulgar”, elocução que, só muito depois de a praticar, aprendi que radica no latim divulgare, cujo significado é espalhar entre o vulgo, ou seja, entre o povo.

Devo começar por dizer que o meu interesse por saber coisas começou cedo, em criança, não na escola, que recordo como um lugar e um tempo de aflição e de algum sofrimento, mas sim, na rua e em tudo o que nela se passava, em todas as lojas, oficinas e artesanias de portas abertas e, também, nos campos agrícolas, em redor da cidade. Associado a este que se tornou num prazer, surgiu, mais tarde, o gosto de partilhar com os outros os saberes que ia adquirindo. Nasceu assim este meu pendor pela divulgação de saberes, um gosto, quase um vício, que me acompanhou ao longo da vida. Com o tempo, fui descobrindo ou criando formas de comunicação acessíveis ao público a que me dirigia, fazendo uso de uma linguagem falada, e escrita simples, sem perda de rigor, apelativa e agradável. Devo dizer que, em minha arreigada convicção, receber e facultar conhecimento são actos de prazer, mas também de cidadania.

Sem me ter dado conta de que o estava a fazer, iniciei praticar divulgação de conhecimentos durante a adolescência, no mundo rural, um mundo que conheci razoavelmente bem como praticante, activo e interessado, de um campismo selvagem nos campos do Alentejo, o longo dos anos de 1940. Foi no convívio com os camponeses que, em trocas de saberes, surgiu e se consolidou este meu interesse por partilhar muitos dos meus então pouco consolidados saberes. Algumas noções de Ciências Naturais, que aprendia no Liceu, eram tema das nossas conversas. Eu procurava ensinar-lhes as diferenças entre angiospérmicas e gimnospérmicas ou entre monocotiledóneas e dicotiledóneas, tal como vinha no meu livro de Ciências, mas eles sabiam-no e diziam-no por outras palavras, além de que davam nomes a todas as ervas, arbustos e árvores do seu pequeno-grande mundo. Com eles aprendi a distinguir os cogumelos venenosos dos comestíveis e a conhecer os pássaros pelos seus modos de piar e de cantar. Mais do que na escola, aprendi com eles os ritmos fisiológicos das plantas e animais, determinados pela sazonalidade, e a relacioná-los com as práticas agrícolas das diferentes estações do ano. Eu descrevia-lhes a fermentação e eles abriram-me os sentidos ao odor e ao calor exalados pelos montes de estrume. Falava-lhes da composição do ar e do papel do oxigénio na combustão e na vida dos animais e eles levavam-me a ver os fornos de carvão e a conhecer-lhes o cheiro característico. Foi no contacto com os camponeses que vi, na prática, a transformação da rocha em solo. A terra solta, as raízes que se lhe arrancavam, os restos das folhas mortas, apodrecidas, e a microfauna desse admirável e complexo ecossistema, estavam ao dispor de quem quisesse observá-lo, cheirá-lo, esfregá-lo entre os dedos e sentir e ver os grãos de areia e o pó fino, barrento, associado. Do pó da terra e da lama, ao barro e à argila ia um passo e, com mais outro, chegávamos à cerâmica das telhas, tijolos e loiça rústica, vermelha que ainda se usava. Falar de penicilina, das milagrosas qualidades germicidas deste então novíssimo antibiótico, explicando o significado deste e de outros termos do indecifrável jargão da classe médica, era o resultado de uma conversa a propósito do bolor do pão, de todos conhecido. Com esta convivência, interiorizei uma saudável ruralidade que sempre me acompanhou, ao longo da vida, e me permitiu caldear as influências elitistas do meio académico, no qual me movimentei durante cerca de quarenta anos. Com eles, sobretudo com eles, adquiri uma consciência social e política impossível de obter na escola e no dia-a-dia de uma cidade dominada, vigiada e censurada pelo regime político de então. 

Anos mais tarde, na primeira metade dos anos de 1950, repeti esta experiência com os soldados do meu pelotão de instrução, em Artilharia 3, em Évora, a minha cidade. Com estes ainda adolescentes, a quem tinha de dar instrução militar, foram muitas as oportunidades em que, em vez de lhes falar de canhões, munições, espingardas, e outras noções próprias da guerra, partilhei conceitos simples de ciência que iam ao encontro das suas profissões na vida civil. A propósito do que quer que fosse, havia sempre uma noção de química ou de física a explorar. Falei-lhe de sexualidade tema de que apenas conheciam a obscenidade e o palavrão. Entre letrados com apenas a instrução primária e analfabetos, rapazes da cidade e do campo, os recrutas eram esponjas de ouvidos e olhos escancarados.

Durante quatro décadas na Universidade de Lisboa (entre 1961 e 2001, na Faculdade de Ciências, e entre 1965 e 1981, na Faculdade de Letras, em Geografia), mantive estreita ligação com as escolas, quer como orientador dos estágios exigidos nas licenciaturas do ramo educacional, quer a seu convite, do pré-primário ao secundário, divulgando conhecimentos, adequados aos respectivos níveis de escolaridade, em torno de temas das Ciências da Terra, falados no mesmo tom e estilo, simples mas rigoroso e sempre alegre, que usei nas muitas palestras que fui fazendo em sociedades recreativas, centros culturais, bibliotecas municipais e outros estabelecimentos. Aconteceu que, num passa-palavra entre os professores, no caso das escolas, e entre outros interessados, fez com que me chegassem convites de todo o lado e a todo o tempo. Foi assim que me desdobrei em dezenas e dezenas de acções este tipo. Era e é do conhecimento geral que não cobrava nem cobro honorários e que apenas precisava e preciso de ter o transporte assegurado. Esta actividade de palestrante foi-se intensificado com o passar do tempo, tendo-se alargado a todo o território, quer no continente quer nas ilhas. A par destas conversas, lições ou palestras como se lhes quiser chamar, aceitei, com o mesmo empenho, a mesma simplicidade e a mesma alegria, os convites que me chegaram de quase todas as Universidades nacionais. Divulgar conhecimento científico ou qualquer outro entre os meus concidadãos de todas as idades e das mais variadas condições sócioculturais, foi a melhor forma que encontrei para concretizar a minha maneira de estar, ao mesmo tempo, na Ciência e na Sociedade.

“Velhos são os trapos” diz muito boa gente, preferindo usar o termo idoso que, assim, se generalizou. Mas pior do que ser velho ou idoso é ser pensionista contra vontade, como no meu caso, estupidamente afastado do serviço activo e colocado na “prateleira” por imposição do “limite de idade”. Foi o que me aconteceu. Ser descartado é um sentimento que magoa os velhos, em especial aqueles a quem a Natureza, embora os tenha diminuído fisicamente, deixou intacta a lucidez. Velhos que gostam de ser tratados, não pelos muitos anos que a tradição rotula de velhos, mas pelo que conservam de vigor, energia e entusiasmo.

Divulgar a ciência que cultivei como geólogo e professor de geologia, e tudo o mais que aprendi como curioso de muitas “artes”, foi a opção que tomei no sentido de tornar útil e agradável o meu tempo de pensionista. Desde então que reparto as horas a meu belo prazer, e dele fazem parte, entre outras ocupações, transmitir, pela palavra escrita e falada, o que a vida em sociedade e a profissão me ensinaram, a par de uma intervenção cívica que entendo dever ter como cidadão atento que nunca deixei de ser. Os vinte e dois anos de aposentação permitiram-me ler, com o empenho de quem estuda, temas que a absorvência da vida profissional sempre colocou fora do alcance da minha mão. Assim, “embalado” no ofício de professor, de estudar para ensinar, dei por mim a escrever sobre temas de arte, história, filosofia e outros e, ainda, sobre tudo o que a vida me ensinou.

Os textos que, com propósitos científicos e pedagógicos, de há muito venho divulgando, em livros e em textos avulsos nas redes sociais, têm como destinatários preferenciais os professores que, nas nossas escolas básicas e secundárias, se debatem com falta de elementos que complementem os tradicionais e repetidamente estereotipados manuais de ensino. Visam, ainda, o cidadão comum, interessado em conhecer o chão que pisa e lhe dá o pão. Continuo a escrever muitas horas por dia, indiferente a sábados, domingos, períodos de férias ou dias feriados. Isto porque os reformados estão sempre em férias e porque as férias servem para se fazer aquilo de que se gosta. A verdade é que, quando estou frente ao monitor, seguindo as palavras que, letra a letra, os dois indicadores vão dedilhando, num esforço de acompanhar e não deixar perder as ideias que fluem velozes, a verdade é que, dizia eu, não tenho idade nem as mazelas próprias dos gerontes. E, assim, o tempo se foi transformando em palavras sem que o tivesse visto passar.

Não sei quantos anos mais poderei desfrutar desta bela condição de poder sentir a vida. Serão certamente muito poucos, mas isso não me incomoda. Estou perfeitamente consciente das limitações físicas que os anos me impuseram, mas feliz, de bem comigo, com os outros e com o mundo. Já o disse várias vezes e volto a dizer que conservo comigo a criança irrequieta, curiosa de tudo e alegre que fui, o adolescente, inconformado, contestatário, audacioso e irreverente, próprio desses anos. Conservo também o adulto na força da vida, lutador que não dá tréguas e o velho que, a tudo isso, acrescenta a sabedoria, a paciência, a ponderação e a tolerância que os muitos anos ensinaram.

Quando, em 1977, o saudoso Prof. Rocha Trindade me convidou para integrar o grupo de professores do igualmente saudoso Ano Propedêutico, confrontei-me com a necessidade de escrever, semana a semana, capítulo a capítulo, os textos de apoio (os ap) que marcaram uma geração de portugueses agora a raiarem os 60 anos. Foi uma magnífica e saborosa experiência. Foi mais como divulgador do que como académico, usando de toda a liberdade que o sistema consentiu, que redigi as mais de quatro centenas de páginas desses textos, um êxito editorial com muitos milhares de exemplares vendidos. 

Nos 20 anos que exerci funções de direcção no Museu Nacional de História Natural (1983 a 2003), o meu gosto e empenho em divulgar conhecimento teve plena realização nas muitas exposições que ali tiveram lugar, com destaque para as organizadas em torno do tema dinossáurios. Devo dizer que, no conjunto com os funcionários deste Museu, todos nós sem qualquer formação teórica na área da museologia e aprendendo uns com os outros, concebemos e realizámos, entre elas, “Dinossáurios Regressam em Lisboa”, em 1992, uma das mais espectaculares e concorridas exposições de que temos memória em Portugal, com mais de 360 000 visitantes em apenas onze semanas.

A “Feira de Minerais Gemas e Fósseis”, Museu Nacional de História Natural, Iniciada em 1989, completou este ano de 2023, a sua 36ª edição. Também nelas me envolvi empenhadamente, usando-as como uma esplêndida via para divulgar conhecimentos em domínios da mineralogia e da paleontologia. A aceitação do público, das crianças aos adultos foi, desde a primeira, muito grande, testemunhada todos os anos por milhares de visitantes, tendo-se alargado ao Porto e a Coimbra, com regularidade anual, e a outras cidades com realizações esporádicas. 

O gosto pessoal que sempre tive pela divulgação, actividade que sinto como uma forma feliz de conviver e confraternizar com gente de todas as idades e condições sócioculturais, fez com que. nos vinte e dois anos que se seguiram à minha jubilação, intensificasse a escrita, quer em livros (uma vintena) quer em textos avulsos (alguns milhares) nas redes sociais, a par da de conferencista que trazia da chamada “vida activa”. A pandemia, que nos últimos tempos nos atingiu, levou-me a recorrer à modalidade de videoconferências via “zoom”, prática que continuo a utilizar nos casos em que os convites me chegam de localidades suficientemente afastadas da minha residência. 

Mesmo antes da jubilação acontecia muitas vezes acordar a meio da noite a pensar neste ou naquele problema de entre as matérias em que investigava ou ensinava. Sentia então uma irresistível vontade de me levantar, sentar-me à secretaria e trabalhar nele, ao mesmo tempo que, para lá dos vidros da janela do escritório, assistia ao clarear da manhã. Este hábito transformou-se num prazer e, respondendo ao desafio formulado por alguns dos meus mais de 33 500 leitores, de passar a livro muitos dos textos que diariamente, desde 2015, venho publicando no Facebook, eis-me a dar-lhes satisfação. 

 

“Ao Romper da Aurora” nasceu neste contexto e como resposta ao dito desafio.

 

 

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11.4.24

No "Correio de Lagos" de Fevereiro de 2024

 

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No "Correio de Lagos" de Fevereiro de 2024

 

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3.4.24

A CIÊNCIA E A RELIGIÃO SÃO COMO A ÁGUA E O AZEITE

Por A. M. Galopim de Carvalho

Foram muitos os homens e, nos últimos dois séculos, as mulheres, que pedra sobre pedra, foram erguendo o edifício da ciência, hoje ao nosso alcance. Esse esforço que, em sinal de respeito e reconhecimento, devemos procurar conhecer foi, para muitos deles, doloroso e, em alguns casos, fatal. No que diz respeito à Geologia, cultivar esta disciplina científica nos tempos anteriores ao século XIX teve os seus riscos. E não foram pequenos

Falar ou escrever sobre a origem da Terra e as suas transformações ou sobre o nascimento da vida e a evolução das espécies, incluindo o surgimento do homem, à luz da ciência e, inevitavelmente, em confronto com a “verdade” bíblica e com os dogmas decretados pela Santa Sé, não foi uma caminhada fácil. Foi, sim, causa de perseguições, sofrimento e, não raras vezes, de sacrifício da própria vida. Basta lembrar Averróis, no século XII, Giordano Bruno, no XVI, Galileu, no XVII, e Buffon, no XVIII, para nos darmos conta dos escolhos postos ao progresso desta e de outras ciências.

A idade de cerca de 6000 anos atribuída à história da Terra pelas Sagradas Escrituras, o geocentrismo, que impunha o Universo centrado no nosso planeta, os seis dias da Criação e o Dilúvio bíblico eram algumas das verdades inquestionáveis pelos seguidores da Fé e não havia lugar para os dissidentes, considerados hereges e, como tal, perseguidos. «Existem sóis inumeráveis e infinitas terras que giram à volta deles, como estes sete planetas que giram em torno deste Sol que nos é vizinho», escreveu o italiano Giordano Bruno. Por essa ousadia e por se recusar a admitir que a Terra se encontrava no centro do mundo, este filósofo dominicano, foi queimado vivo, em Roma, às ordens da Santa Inquisição, para purificação da sua alma pelo fogo, no dia 16 de Julho de 1600.

Se nos concentrarmos nesta parte do mundo onde nasceu e se desenvolveu a chamada civilização ocidental, foi, sobretudo a religião cristã que deu respostas a interrogações cruciais como a origem e a natureza do mundo vivo e não vivo. Do Universo ao homem, passando pelo nosso planeta, onde os mares, as montanhas e os rios, os vulcões e os sismos eram alvo de um misto de curiosidade e temor, tudo era explicado pelos doutores da Igreja. E essas explicações impunham verdades globais, definitivas e indiscutíveis.

A ciência, pelo contrário, não impõe. Propõe. Aponta explicações, sujeita-as a debate, a escrutínio e a verificações. Reformula-as em função da descoberta de novos elementos e, se necessário, retira-as do discurso, dado que o seu objectivo é a verdade dita científica.

Como é vulgo dizer-se, a ciência e a religião são como a água e o azeite. Não se misturam. Coexistem, mas cada uma no seu campo. É evidente que as atitudes de uma e de outra perante as entidades e os fenómenos naturais, são geradoras de confronto, hoje razoavelmente civilizado e pacífico nas sociedades civilizacionalmente mais avançadas, mas conflituoso e, muitas vezes, cruel e desumano, no passado. Apesar das perseguições, a ciência, com os seus argumentos objectivos e de apelo à razão, ia ganhando cada vez mais força. Foram muitas as vezes em que a igreja tentou submeter os “sábios” e pôr o seu trabalho ao serviço da Fé.

A Geologia foi, sem dúvida, um dos domínios do conhecimento científico cuja competição e cujos conflitos com a religião (em particular com a Igreja católica) foram mais graves e violentos. Oprimida e perseguida, durante séculos, por um catolicismo fundamentalista, a Geologia já ganhou, em muitos países, estatuto de ciência de grandeza compatível com a sua real importância na sociedade, o que não é o caso em Portugal, onde esta disciplina continua subalternizada nos currículos escolares e continua arredada da cultura geral dos portugueses, dos mais humildes e iletrados à elites intelectuais mais iluminadas.

Com algumas excepções, a ciência não é perseguida nos dias de hoje. De mãos dadas com a tecnologia, constituem alavancas poderosas para o bem e para o mal, ao serviço de uma humanidade a um tempo sabedora e desencantada, à procura de um caminho que tarda em encontrar.

Ao evocar filósofos, astrónomos, geógrafos, naturalistas, geólogos, mineralogistas e paleontólogos que, tijolo a tijolo e degrau a degrau, ergueram o maravilhoso edifício das Ciências da Terra, deparámo-nos, a cada passo, com a mencionada competição, que só terminou em finais do século XVIII, com a vitória do liberalismo.

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A esmagadora maioria das personalidades incluídas nesta obra são homens e isso deve-se unicamente à condição de inferioridade, nesses tempos imposta às mulheres, a quem o ensino era praticamente vedado. O século XX acabou com essa indignidade e, assim, são muitas as mulheres, hoje tantas ou mais do que os homens, que ocupam os bancos e as cátedras das universidades e participam na investigação científica e tecnológica.

 

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1.4.24

AQUELE BORREGUINHO BRANCO.

Por A. M. Galopim de Carvalho

“Comer o borrego pela Páscoa, no Alentejo, como no resto do País, está ligado a tradições religiosas e culturais chegadas até nós, vindas de longe, no tempo e na distância. É ler a Bíblia e ver como este simpático animal, com este ou outros nomes, se liga à tradição judaico-cristã, não sendo difícil procurar-lhe raízes ainda mais antigas. No antigamente, sacrificava-se o anho no altar; hoje come-se o borrego em reunião de família, depois de passadas as trevas e a dor, todos os anos evocadas durante a Semana Santa.

Nos meus tempos de criança quem tinha posses matava o borrego em casa, no sábado, logo pela manhã, a fim de que a sua carne pudesse figurar na ementa do almoço desse dia, já festivo, depois de bem anunciadas as Aleluias, ao meio-dia, nos carrilhões da Sé, logo seguidas pelo repicar de todos os sinos de todas as igrejas da cidade e arredores.

Era a festa! Era o fim do luto!

Umas semanas antes da Páscoa, por volta do ano de 1936, o meu pai comprou um lindo borreguinho acabado de desmamar, que já se governava sozinho se o deixassem em campo com erva.

Nós tínhamos necessidade de o levar a pastar, "fora de portas", no que nos disputávamos constantemente. Cada um queria para si o direito de segurar da corda que o prendia à coleira, onde chocalhava um pequenino guizo de latão. Vê-lo saltar, correr com ele que, por fim, já nos seguia, sem trela, e vinha ao nosso chamamento, era uma alegria nunca vivida. O Chico, que era o irmão mais velho dos então cinco irmãos, fez-nos saber qual era fim destinado ao nosso alegre e simpático companheiro de folguedo nos terrenos incultos e cheios de erva do lado de fora da muralha fernandina.

Inexoravelmente, aproximava-se o sábado, o dia do sacrifício. Cedo se organizou um “comité” de luta. Uns, entre os quais eu, tinham por missão espiar os planos do “inimigo”, procurando nas conversas dos pais os elementos com que os mais velhos delineavam as estratégias a empreender.

Já sabíamos que o tio Manuel, irmão do pai, caiador e homem de todas as profissões, viria sábado, bem cedinho, ocupar-se da matança antes que os sobrinhos acordassem. Eu teria quatro para cinco anos, era o mais novo; o mais velho, uns onze a doze e os três do meio, a Lourdes, a Beatriz e o Mário, faziam, entre si, diferença de um ou dois anos. Nessa manhã, após uma noite de vigília dos mais velhos, que se revezaram em quartos para que não falhasse a alvorada, levantámo-nos bem mais cedo do que a mãe pensava e aguardávamos o momento de dar execução ao plano traçado e meticulosamente aprendido por cada um, no papel que lhe cabia.

Entretanto, nos dias que antecederam aquele Sábado, tínhamos exercido intensa actividade de sensibilização da mãe, onde sabíamos estar a última palavra no desfecho do drama, chamando-lhe a atenção para a graciosidade do bicho, forçando-a a acariciá-lo, redobrando, para que visse, as nossas atenções e brincadeiras com ele.

- Ó mãezinha, ele é tão lindo! Nós gostamos tanto dele!

Visivelmente aflita, a mãe já não sabia o que fazer, dividida, por um lado, entre as dificuldades próprias de uma família numerosa e de posses muito limitadas e, por outro, o nosso amor por aquele animalzinho e a simpatia que, também ela, já nutria por ele.

Quando, no sábado, o tio chegou, a mãe, de olhos inchados e vermelhos, já estava no quintal com os alguidares e os preparos necessários. O tio trazia a navalha, bem afiada e bicuda. Num canto, o "mémé", branco de algodão, preso à trela, balia como que chamando a si a atenção da mãe que, roída por dentro de remorsos antecipados, evitava olhá-lo.

- Vá, Manuel, despache lá isso, depressa!

De rompante, descemos a escada de acesso ao quintal e berrando uns, chorando outros, rodeámos o animalzinho com tanta determinação que não houve quem tentasse, sequer, tirá-lo das nossas mãos. A mãe, mentalizada de há muito pela nossa acção, foi a primeira a ceder, mais aliviada do que contrariada. Afinal, também ela não queria o sacrifício do bicho e percebera a tempo o que essa violência representaria para nós.

O tio, completamente alheio ao drama, aceitou mal aquela mudança de última hora, não prevista e, sobretudo, o que mais lhe desagradou foi perder aquela pele branquinha que lhe renderia uns tostões. Saiu resmungando, indignado com a cena de insubordinação.

O pai foi o último a saber do resultado do confronto. Quando apareceu no campo da refega, a batalha estava decidida e não seria ele a pegar na faca. Não havia vencidos!

Havia Aleluias!”

Para o bicho, para nós e também para eles, de aliviados que ficaram. O pai acabou por ir ao talho comprar a carne que a mãe, de pronto, encomendou para a Festa que, assim, o foi de facto.

De um borrego qualquer, que nunca havíamos conhecido e passada que foi a tensão vivida, com que apetite comemos e que bem que nos souberam aquelas costeletas fritas com alho, aquele maravilhoso assado, no Domingo, e o ensopado, na Segunda-feira de Festa.

O borreguinho, acabámos por conceder, levou-o para o monte o senhor Domingos, o marido da nossa lavadeira, depois de nos prometer, solene, libertá-lo entre os outros que por lá andavam e não consentir que ninguém o levasse. – Nunca!

De vez em quando perguntávamos-lhe por ele.

- Está lindo e mais crescido!

– Ó paizinho, quando é que vamos ao monte do senhor Domingos ver o nosso amigo?

- Um dia destes! – respondia.

O tempo encarregou-se de diluir a nossa preocupação e de nos confrontar com a realidade que também nos ensinou a aceitar.

Esta história, tantas vezes contada em sucessivas festas de Páscoa, reunida a família em torno da mesa com a assadeira de barro ao centro, fumegante e apetitosa de odor e cor, sofreu ao longo dos anos retoques de todos nós, já crescidos, dando-lhe as cores que cada um tomou para si.

Porém, no essencial, foi isto que aconteceu, há uns oitenta e poucos anos. Nunca soubemos o destino deste nosso companheiro, embora não seja difícil imaginá-lo.

Para mim, em todas as Primaveras, há sempre, nos campos do Alentejo, um borreguinho branco e saltitante a perpetuar-lhe a imagem.

 

 

 

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31.3.24

 

30.3.24

Grande Angular - O melhor mês

Por António Barreto

Abril não é o mês mais cruel, como dizia T. S. Eliot. Bem pelo contrário, é o melhor. Pelo menos para nós. Também mistura memórias e desejos, como dizia o original. Mas não faz germinar lilases: aqui, Abril é o anúncio dos jacarandás. E dos cravos.

 

Começa amanhã o mês do meio centenário. Seguir-se-á um ano durante o qual tudo se dirá, da cruel verdade ao cómico dislate. Seminários, livros, programas de televisão, filmes, romarias, investigações e evocações, nada faltará. Se forem poucas as liturgias e raros os reflexos condicionados, talvez, dentro de um ano, saibamos mais sobre nós próprios.

 

Talvez sejamos capazes de perceber melhor por que razões a ditadura durou tanto tempo, por que motivos os portugueses deixaram que assim acontecesse. Ou antes, por que não foram capazes de melhor resistir e mais combater. Talvez sejamos capazes de saber melhor por que os portugueses ainda são mais desiguais, pobres, analfabetos e resignados do que outros na Europa. E pode também ser que venham mais argumentos que nos permitam compreender melhor as razões pelas quais, no grande continente que é a Europa, este povo pequeno, pobre e marginal resistiu, sobreviveu e insistiu na sua independência.

 

Se o meio centenário de Abril não for simplesmente, mesmo em nome da liberdade, a consagração dos actuais interesses, o respeito pela vassalagem e um festival de vingança e de intolerância, talvez as festas valham a pena. Abril não merece louvaminhas, muito menos represálias e desforras. Abril merece liberdade, tolerância e inteligência.

 

Bela maneira de comemorar Abril! Apesar da instabilidade e da desordem institucional, mau grado a fragilidade gerada pelos resultados eleitorais, a democracia resiste e funciona! Geneticamente marcado à esquerda, o 25 de Abril, cinquenta anos depois, sobrevive com saúde a vitórias das direitas, ao acréscimo das direitas radicais e à vulnerabilidade das soluções governamentais adoptadas. Não há melhor maneira de comemorar Abril do que esta de demonstrar que a democracia vive com a liberdade, com a revolução social e com o nacionalismo radical. Assim como com a integração europeia, a intervenção do Estado e o capitalismo liberal. 

 

No ano do meio centenário de democracia, um governo de maioria absoluta e com condições de estabilidade, isto é, o governo do PS foi derrubado e substituído por um governo sem maioria e com instabilidade garantida. Nesse mesmo ano, três parlamentos, o nacional, o madeirense e o açoriano, foram dissolvidos antes dos prazos previstos. O desperdício e a barafunda institucional ditam há muito a sua lei. Nem a democracia conseguiu mudar isso. Talvez seja uma consolação: os portugueses continuam a ser o que sempre foram.

 

A abstenção atingiu os 40% e já foi pior. Não é a mais alta da história, longe disso. Mas está entre o grupo das mais elevadas destes cinquenta anos. A abstenção é evidentemente desinteresse. Sinal dos tempos. Fraqueza de uma sociedade. Mas também advertência aos políticos e à política. Neste capítulo, Portugal não anda muito pior do que a Europa. Nem melhor.

 

Que belo modo de festejar o 25 de Abril! Toma posse um governo minoritário, enfraquecido e vulnerável como poucos antes dele. Mais parece um governo provisório dos idos de 1975. A solução encontrada para a presidência do Parlamento é engenhosa e imaginativa, não se pode negar. E revela civilidade de comportamentos. Mas não se pode esconder que seja também débil e de improviso. Se fosse a solução adoptada em caso de “bloco central” ou de qualquer coligação adulta e formal, muito bem. Sendo assim, como foi, é gesso em perna de pau!

 

Há mais factos a referir, neste ano de comemoração. A direita somada, moderada ou radical, em conjunto, atingiu uma das mais altas proporções da história: mais de 53%.... Nunca a direita radical, a direita de protesto, a direita nacionalista ou mais vulgarmente a extrema-direita, tiveram tantos votos com agora.

 

O mais antigo partido português, o PCP, com quatro deputados, quase desapareceu do Parlamento, onde já teve 44 eleitos. Após 103 anos de existência, um dos últimos partidos comunistas do mundo prepara-se para desfalecer. Curiosamente, ainda hoje é o partido mais temido por todos os outros, democráticos ou não, de esquerda ou de direita. E comporta-se como tal.

 

O partido mais antigo e mais claramente de direita democrática, o mais parecido que temos com a democracia cristã europeia, o CDS, quase desapareceu novamente e, se está no Parlamento, com dois deputados, é graças ao banco do pendura.

 

Todos os partidos ditos esquerdistas e revolucionários do 25 de Abril, criados um pouco antes ou logo a seguir, despareceram ou nunca chegaram ao Parlamento: LCI, UDP, MRPP, PCP (ml), POUS, OCMLP, PSR, além de outros. Nunca os partidos mais marcadamente marxistas, com ou sem deputados eleitos, somaram tão poucos votos como agora…

 

Este ano de comemoração vai ser de viva controvérsia. Não vão faltar os argumentos radicais. Progresso e miséria vão ser frequentemente referidos. Riqueza e pobreza não faltarão ao debate. Desordem e melhoramento serão facciosamente defendidos. Ainda bem. Pode ser que resulte, em fim de contas, mais conhecimento de nós próprios e menos idolatria.

 

Vamos ficar a saber que nunca o Serviço Nacional de Saúde esteve tão em crise como agora. Nunca os mais pobres foram tão mal servidos. Como saberemos ainda que nunca, como agora, tantos processos gigantescos de políticos e ex-políticos, de bancos, empresas financeiras e de serviços, de transportes públicos, de construção e de telecomunicações duraram tanto tempo, estiveram tantos anos em investigação e inquérito, à espera… Nunca como agora houve tanta desordem na imigração, tanta miséria na imigração ilegal e tanta desordem nas fronteiras. Ao mesmo tempo que, tal como nos anos 1960, os valores da emigração de portugueses para o estrangeiro atingem picos inimagináveis.

 

Mas também vamos ficar a saber que os últimos anos têm sido de rigor financeiro e de excedente público, de poupança e de diminuição da dívida. Que os rendimentos pessoais e familiares têm melhorado. Que a pobreza tem diminuído.  Que, apesar das escandalosas falhas, nunca houve tanta educação, tanta instrução e tanta formação como agora.

 

Abril é o melhor mês. Mistura memórias e desejos. Cravos e jacarandás.

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Público, 30.3.2024

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29.3.24

“O Avô e os Netos Falam de Geologia” - FINALMENTE, 4ª edição


Por A. M. Galopim de Carvalho

Este livro é uma ideia tão feliz quanto necessária e útil. O seu valor pedagógico é comparável aos cadernos de iniciação científica de Rómulo de Carvalho. Com uma diferença que lhe acentua a utilidade: é que me parece que precisam tanto dele os jovens alunos como os professores do ensino básico e secundário que temos e em que me incluo. Recomendá-lo-ei aos meus alunos do secundário, assim como tomarei a iniciativa de o recomendar aos colegas de grupo disciplinar e ainda solicitarei à direcção da Escola que adquira meia dúzia deles para a biblioteca. 

José Batista da Ascenção

Professor de Biologia e Geologia da Escola Secundária Carlos Amarante, Braga

 

Sobre o livro

Naquele Verão, era quase sempre com o Sol a descer para lá do Oceano, que o avô falava das muitas coisas que haviam preenchido o seu mundo como geólogo e professor de geologia. Sob o alpendre coberto de hera, no pequeno terraço anexo à casa, uma grande mesa com tampo de ardósia, onde se podia escrever com giz, e algumas cadeiras eram o centro preferido para estas conversas com os três netos. Liberta a mesa de tudo o que servira o jantar, o Domingos e os gémeos Francisca e Mateus, rodeando o avô, tinham nos olhos o brilho da curiosidade. Mais velho, o Domingos, terminara o 7º ano de escolaridade. O Mateus e a Francisca tinham concluído o 6º. O tempo de férias era agora todo deles, com praia pela manhã, jogos e leituras, dentro de casa, nas horas mais quentes da tarde e aquele apetecido convívio ao fim do dia, que os conduzia a maravilhosas viagens e aventuras. 

Embalados nas palavras do avô, “caminhavam” sobre rochedos em altas montanhas, “corriam” no solo fofo das estepes e pradarias, “pisavam” o chão áspero e duro dos vales secos e gélidos da Antárctida, “respiravam” a humidade quente e perfumada da floresta amazónica, “mergulhavam” nas profundezas do oceano e “nadavam” nas águas tropicais, límpidas e mornas, por entre corais e peixinhos de todas as cores. Ouvindo as histórias que o avô contava, “subiam” ao topo de vulcões jorrando lavas incandescentes ou projectando nuvens imensas de cinza, “escorregavam” nas dunas escaldantes no deserto do Sahara ou “percorriam” grutas repletas de cristais e imaginavam-se entre dinossáurios e muitos outros animais desaparecidos.

Encorajado pelo interesse e pela atenção dos netos, o avô não parava de falar. Paisagens que percorrera, profundas minas a que descera, museus que visitara, grandes figuras que conhecera e episódios que vivera ou presenciara eram condimentados com ensinamentos nos domínios em que trabalhara e que, ao mesmo tempo, estivessem entre as matérias constantes dos programas escolares destes três elementos do seu pequeno e interessado auditório.

E era tudo tão agradável e entusiasmante. Ouvir o avô era como ver um filme ao lado de alguém que explicava e tornava fácil o que parecia difícil de entender. A cada passo, as novas palavras necessárias ao discurso iam sendo descodificadas, “traduzidas por miúdos”, como dizia o avô, ganhando significado.

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(Na introdução da 1ª edição)

 

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27.3.24

ESCOLA PÚBLICA -CARTA ABERTA AO FUTURO GOVERNO

Por A. M. Galopim de Carvalho

(saído no Público online, no passado dia 20)

Na sua bem visível luta de há anos e que dá mostras de prosseguir, os professores têm posto a nu algumas vertentes da degradação da Escola Pública, uma deplorável e angustiante realidade. A oitava ronda do PISA (programa de avaliação da OCDE) dada a conhecer no ano que findou, mostrou que, em 30 países, Portugal ocupa o 30º lugar em literacia científica, o 29º, em Matemática e o 24º, em leitura, resultados que nos envergonham e revelam a deplorável e manifesta pouca importância dada a este sector da nossa sociedade. Com base nas classificações (os “rankings”, como se tem dito) oficialmente divulgadas, fica claro que Escolas Públicas más e alunos maus, em quantidade preocupante, são, entre nós, uma vergonhosa realidade. Temos vindo a esvaziar conteúdos e a criar resultados fictícios para mostrar à OCDE. As direcções das escolas são pressionadas no sentido de facilitar as aprovações e os professores são convidados a agirem em conformidade. Reprovar um aluno representa, para o professor, e para os colegas do conselho de turma, terem de justificar essa decisão, em moldes que mais parecem um castigo, a que eles fogem subindo as notas.

Salvo as muitas e boas excepções, estamos a lidar com uma geração de adolescentes sem qualquer interesse pelo saber, ignorantes de quase tudo, que não leem nem sabem escrever português, cujos pais, apenas desejam que os filhos tenham aprovação e, se possível, com boas classificações. Grande número de pais ou encarregados de educação não está à altura das suas responsabilidades. Pais e encarregados de educação, já instruídos e educados no pós-Revolução de Abril, a quem a escola deu, igualmente, muito pouco.

A classe política, no seu todo, a quem os militares de Abril, há 50 anos, generosa, honradamente e de “mão beijada” entregaram os nossos destinos, mais interessada nas lutas pelo poder, esqueceu-se completamente, entre outras realidades, de facultar conhecimento, civismo, cidadania, em suma, a uma sociedade que aceitou conduzir.

Entre os sectores da vida nacional, que muito pouco beneficiaram com esta abertura à liberdade e à democracia, está a educação e, aqui, a escola falhou completamente. A iliteracia cultural e científica, mesmo aos níveis mais básicos, de uma parte importante da nossa população, a todos os níveis socioprofissionais, a sucessiva e elevada abstenção em actos eleitorais, a irracionalidade e violência associada ao futebol e o elevado número de consumidores de programas de TV de mais baixo nível cultural são a prova provada desse falhanço. 

São muitos os portugueses a quem a escola deu e continua a dar diplomas, mas não deu e continua a não dar a educação, a formação e a preparação essenciais a uma cidadania plena. Educação, formação e preparação, três grandes défices que o dr. António Costa, em começos do seu mandato, já lá vão 8 anos, disse serem a sua grande preocupação, preocupação que, infelizmente, pouco passou das palavras.

Verdadeiros défices na educação, na formação e na preparação para uma cidadania plena abriram as portas a um populismo, a que a democracia deu voz e que, usufruindo da liberdade dessa mesma democracia, nos procura arrastar para um modelo de sociedade que a história já mostrou que sempre nos amordaçou, com consequências funestas. 

Todos sabemos que se alargou a escolaridade obrigatória e gratuita até ao 12º ano. E isso foi bom. Foi, mesmo, muito bom. No meu tempo, a escolaridade obrigatória e gratuita era a chamada 3ª classe (actual 3º ano). Todos sabemos que o parque escolar deu um grande pulo em frente, comparativamente ao de um passado que nos envergonhava. Mas a verdade é que não chega. Está, mesmo, muito longe de chegar.

Pergunto muitas vezes que infelicidade caiu sobre uma significativa parcela do nosso povo, que rejeita, com o sorriso da ingenuidade ou da iliteracia, tudo o que convide a pensar, a reflectir sobre si mesmo e sobre o que o rodeia. Um mundo, tantas vezes, nas mãos de políticos incompetentes e oportunistas de que a nossa sociedade está cheia, onde, de há muito, impera a corrupção, o vírus do futebol profissional e a promiscuidade entre a política, o poder económico e a justiça.

Todos sabemos que há boas e excelentes escolas públicas, que há bons e excelentes professores, que há bons e excelentes alunos, mas o essencial do problema que temos de enfrentar reside na quantidade preocupante de escolas más, professores maus e de alunos maus.

A mola real de uma verdadeira e eficaz política de Educação reside na dotação orçamental que lhe é destinada e que tem de ser adequada à importância deste sector na sociedade. Da satisfação desta necessidade depende a resolução de todas as situações e problemas do sector, de há muito, identificados.

A preparação de professores deveria ser pensada de molde a oferecer níveis de excelência compatíveis com a sua importância na sociedade, oferecendo saídas profissionais adequadamente remuneradas e atraentes.

O actual sistema de avaliação dos professores, demasiado injusto, não ajuda a elevar o nível do ensino. Avança-se por quotas e não por mérito. Praticamente, nada avalia. Propostas de avaliações a sério têm sido rejeitadas por parte dos muitos que não querem ou receiam ser avaliados. Neste capítulo, os maus professores, que os há e não são assim tão poucos, os tais que recusam as avaliações a sério e veem na Escola um emprego assegurado até à aposentação, têm contado com o apoio dos sindicatos, que põem ao mesmo nível os bons e os maus profissionais.

É preciso pôr em prática uma rigorosa supervisão científica e pedagógica dos manuais escolares. São muitos os que se repetem acriticamente, com noções estereotipadas e, por vezes, com erros, tantas vezes denunciados.

Impõe-se a necessária dignificação dos professores e educadores, num conjunto de acções, envolvendo salários compatíveis com a sua relevância na sociedade, colocações, libertação de todas as tarefas que não sejam as de ensinar e outras, postas em evidência nas suas reivindicações.  

O pessoal não docente representa um conjunto de elementos fundamental no universo do ensino, pelo que é forçoso dar lhes um tratamento, em termos de dignidade e de salários, a condizer.

É urgente demolir o obsoleto edifício da Educação que temos tido e, em seu lugar, fazer surgir um outro, concebido e levado a cabo, numa profícua colaboração entre governos e oposições, para durar três ou mais legislaturas. Desta vez, será necessário ouvir os bons professores (que os há) e dar início a uma campanha poderosa, com base na verdade e no dever patriótico, que entre na poderosa “máquina ministerial”, melhore o que tiver de ser melhorado e varra o que tiver de ser varrido.

 

Termino dizendo que considero os professores, incluindo os educadores, entre os mais importantes pilares da sociedade e, uma vez mais, que é necessário e urgente conferir-lhes o estatuto, a atenção e a dignidade compatível com essa importância.

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A. M. Galopim de Carvalho

Professor catedrático jubilado da Universidade de Lisboa


 

 

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23.3.24

Grande Angular - Vésperas

Por António Barreto

As últimas eleições não trouxeram soluções, nem tranquilidade. Muito menos estabilidade. É quase universal a crença na agitação que se segue, os desequilíbrios parlamentares e sociais, a instabilidade necessária e provavelmente as novas eleições a curto prazo. Polarização política e fragmentação partidária estão nas cartas. A animosidade pública nunca foi tanta. A virulência do argumento político nunca ou raramente esteve tão presente como agora. E note-se que a vontade expressa de todos os partidos de distribuir dinheiros a todos os grupos sociais o mais rapidamente possível não é sinal de força nem de abundância: é sinal de fraqueza e de competição demagógica. Nenhum partido se mostra capaz, por si só, de orientar, dirigir e impulsionar um esforço nacional, assim como de congregar forças rivais. Os principais partidos esperam o desastre dos outros e nada parecem fazer para ultrapassar a instabilidade que se anuncia.

 

O Chega tem sido a surpresa da vida política nacional. E das eleições. Os seus próprios apaniguados devem estar surpreendidos. Como já tanta gente disse, se aparecem e se têm este êxito, é por motivos que devem ser investigados, sentidos e estudados. E sobretudo compreendidos.

 

Se a democracia não consegue detectar as razões pelas quais o Chega aparece e progride, é porque é cega e estúpida. Se a democracia não consegue integrar o Chega na luta política, nas eleições e nas instituições, é porque é sectária e fanática. Se a democracia não consegue eliminar as raízes do Chega, assim como as terras que lhe são férteis, é porque não tem força. Se a democracia não consegue, por actos e gestos, não por palavras, mostrar à população a carga demagógica e ridícula da política da “vassoura e da limpeza” do Chega, é porque é politicamente impotente e culturalmente medíocre.

 

Em poucas palavras: ou a democracia transforma o Chega ou o Chega transforma a democracia. Nestes cinquenta anos, a democracia portuguesa conseguiu integrar, dissolver e transformar partidos extremistas e radicais, revolucionários ou não. A democracia portuguesa, mesmo vulnerável, mesmo imatura, conseguiu integrar e transformar os seus delatores e os seus subversivos. Também poderá fazê-lo a estes. Se souber mudar, ouvir, ver, sentir e perceber.

 

Esperam-nos grandes combates. Enormes confrontos. Entre partidos. Entre instituições. Entre grupos e classes sociais. Muitos consideram que tal facto é útil e essencial para a democracia. Dizem que só assim as pessoas e as organizações se esclarecem e se definem. Que só dessa maneira toda a gente é chamada a revelar as suas posições. Para uns, trata-se sobretudo de questão moral: cada um deve dizer ao que vem e o que quer. Para outros, a separação das águas é condição de luta e de esclarecimento: só assim, com separação e afrontamento, o bem e a verdade vêm à tona.

 

O problema é que os grandes combates deveriam ser travados, não uns contra os outros, mas contra a pobreza, a corrupção, a violência e o preconceito. Ora, tanto à esquerda como à direita, há gente que perfilha estas lutas e estes objectivos. E tanto à esquerda como à direita há também preconceito, cobiça e corrupção. Separar todas as esquerdas de todas as direitas é simplesmente declarar a guerra das classes. Sem proveito aparente.

 

Não se trata, como já há quem o diga, da velha lengalenga que afirma que “já não há esquerda e direita”, o que aliás parece ser um traço específico da direita. Não, não é verdade. Sim, há esquerda e direita. Só que nem uma nem outra têm o monopólio da verdade, da honradez e da liberdade. Nem uma nem outra têm o exclusivo da maldade, da cupidez e do despotismo. Mas há certos momentos, certas fases da evolução histórica, certas situações sociais e políticas que exigem esforço comum, convergência de objectivos e de uns tantos propósitos, sem os quais a deriva política pode levar facilmente a desastres.

 

Não é verdade que a divisão entre facções, entre partidos e entre instituições seja condição essencial para poder meter ombros aos outros combates, os mais graves e mais urgentes. Na verdade, os combates entre facções já destruíram muitas democracias. Da Alemanha à Rússia, da Itália a Espanha e a Portugal, do Brasil ao Chile, não faltam exemplos de países e democracias que se perderam nas lutas entre facções e onde os resultados nunca foram favoráveis à liberdade, à paz e à honestidade.

 

Mais do que nunca, ou quase, Portugal necessita de convergência entre as principais facções. Para evitar cenas como as vistas e ouvidas estas últimas semanas, por exemplo na justiça. Aqui, a guerra entre instituições, entre profissões, entre estatutos e condições, só pode levar a histórias como estas, de verdadeira obscenidade, com acusações definidas e apagadas, com arguidos pronunciados e ilibados, com prescrições anunciadas, com decisões feitas e desfeitas várias vezes. Os protagonistas da justiça têm dificuldade em dar-se conta de si próprios. Sem intervenção política de carácter nacional, de consenso e convergência, pouco ou nada será possível. Sem revisão profunda da política de justiça, da legislação e da organização, pouco ou nada há a esperar da justiça como contributo para a liberdade e a democracia.

 

Tanto quanto a justiça, saúde e educação necessitam de esforço jamais visto. Os dois mundos entraram em colapso e, sem reforma e trabalho colossais, novos desastres estão à vista. Mais ainda, o país parece condenado a uma sucessão de poucos anos de progresso seguidos de muitos de atraso. Ou uma espiral de pequeno melhoramento seguido de longo retrocesso. Um passo em frente, diante da Europa, dois passos atrás, perante a mesma Europa. Esta espécie de triste sina, de fatalidade, não resulta da sorte, é obra dos homens e das mulheres. Das elites e do povo.

 

Polarização e bipolarização! Há muita gente que acarinha estes termos e o que eles anunciam. Esquerda contra a direita! Classe contra classe! Capital contra o trabalho! Trabalho contra o capital! Tocar a rebate pelos combates vitais! Promover a guerra entre classes, entre instituições! Nada disso trará qualquer coisa de boa ao país e à população. 

 

União nacional? Nem pensar nisso. Nunca deu bom resultado, a não ser, em certos países, em tempo de guerra. Unidade de todos os partidos? Não resulta. Coligação de todas as esquerdas contra coligação de todas as direitas? É uma solução, mas não se afigura especialmente produtiva. Coligação das forças políticas centrais e moderadas? Está nas cartas. Mas há quem não queira ver.

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Público, 23.3.2024

 

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